domingo, 24 de janeiro de 2010

ENTREVISTA COM MARIA HELENA DE MOURA NEVES


Para a maioria das pessoas alfa betizadas no Brasil, gramática é sinônimo de decoreba. Maria Helena de Moura Neves, 78, uma das mais respeitadas linguistas do país, concorda: “Isso que se ensina na escola é ‘gramatiquice’”. Antes não houvesse, segundo ela, porque cria um bloqueio nos alunos e impede que se veja sua real beleza. Para a professora aposentada da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, gramática é algo fascinante, é a vida da língua. E nada tem de rígida como fazem parecer os manuais que quase ninguém abre. “Quando digo que esta é minha especialidade, sempre preciso fazer um parêntese para explicar que não fico o dia todo procurando sujeito, verbo e predicado”, diz, bem-humorada.

Se gramática não é apenas um conjunto de regras tediosas que servem para classificar mecanicamente palavras, locuções e orações, o que é afinal? “É aquilo que arranja e arquiteta a produção de sentidos. É a língua no seu funcionamento. A maior parte do que se decora nas aulas de gramática não é verdade, porque não é assim que a linguagem funciona”, afirma.

Maria Helena é uma gramática funcionalista – vertente na qual o que importa é a função, determinada pelo uso, das formas linguísticas. Em vez de se pautar pelo que prescrevem os manuais e julgar o que é certo ou errado, ela usa uma abordagem científica para analisar a gramática viva.

Boa parte de seu trabalho é baseado num corpus, uma base de dados informatizada que reúne diversos tipos de textos (jornalísticos, didáticos, ficcionais, oratórios etc.) publicados no Brasil desde o século 19. Um trabalho que foi desenvolvido por ela e seu colega Francisco da Silva Borba. Iniciado nos anos 1980 e atualizado periodicamente, o corpus é uma gigantesca amostra do português real – contém hoje cerca de 200 milhões de palavras (leia reportagem em Unesp Ciência, 1ª edição).

Contrastar regra e realidade é uma das principais linhas de trabalho da pesquisadora, o que rendeu dois livros: Guia de uso do português (Editora Unesp, 2000) e Gramática de usos do português (Editora Unesp, 2003) – dois catataus, um com 800 e o outro com mais de mil páginas. Para mostrar que a riqueza e o dinamismo da língua não cabem em manuais engessados, ela cita o caso do “mas”.

Segundo a norma gramatical, “mas” é uma conjunção adversativa, ou seja, serve
somente para ligar duas orações contrárias. Na prática, porém, ela aparece conectando também frases que vão na mesma direção. “Comprei esse livro, mas em São Paulo”, exemplifica a autora em sua sala no câmpus de Araraquara. Outro exemplo, desta vez literário, vem do conto O búfalo, de Clarice Lispector, cuja primeira frase é “Mas era primavera.”. “Ninguém pode dizer que Clarice não sabia gramática”, ironiza.

É nesse terreno escorregadio da linguagem, em que as palavras deslizam para conferir ao texto diferentes efeitos de sentido, que a linguista transita com desenvoltura e gostaria de ver os alunos mergulhados. Esse é o caminho, segundo ela, para reconhecer as características objetivas, persuasivas ou poéticas de um texto, o que é muito mais importante do que saber se
o sujeito é composto ou oculto. “Desse modo, o aluno cria gatilhos mentais, de
forma que quando quer falar ou escrever para produzir tal sentido, ele aciona esse processamento.” Em vez de ficar tateando a superfície das palavras, o aluno deveria ser levado a penetrar no texto, defende.

As críticas ao ensino formal de gramática partem de alguém que conhece bem
a realidade da educação brasileira. Antes de concluir a graduação em Letras, aos
39 anos, Maria Helena foi professora de português em escola pública, no ensino
fundamental e médio, durante quase duas décadas. Essa bagagem a levou, vários anos mais tarde, a investigar os descaminhos do ensino básico da disciplina. Em A gramática – história, teoria e análise, ensino (Editora Unesp, 2001), Maria Helena traça um diagnóstico desanimador: “100% dos professores entrevistados afirmam ensinar gramática. Uma conclusão muito grave que
se tira dos resultados da pesquisa, porém, é que os professores confessam que seu trabalho (…) ‘não serve para nada’”.

Mudar isso é função da universidade, avalia. “O ponto crítico é a formação dos
professores”, diz. “Eles têm de sair da faculdade com a noção de que a linguagem é operacionalizável no uso, que ela é nosso instrumento de reflexão. É curioso que, justamente na aula que trabalha a linguagem, não exista espaço para reflexão.” Essa é a mensagem que ela passa quando participa de cursos dirigidos a educadores e nas palestras que dá pelo Brasil, quase sempre diante de auditórios lotados.

Mas diagnosticar o problema e apontar caminhos para mudança não é o suficiente para a pesquisadora. Seu trabalho ajuda a entender também as raízes históricas que explicam o anacronismo do ensino contemporâneo da disciplina.


Raízes gregas

A gramática, como estudo da língua, surgiu na Grécia Antiga, com caráter explicitamente normativo (o termo grego grammatiké significa “a arte de ler e escrever”). O primeiro manual conhecido data do século 1º a.C. e foi produzido na biblioteca de Alexandria. Por essa época, a civilização grega já estava ruindo, como resultado de um longo período de invasões bárbaras. Assim, a normatização foi uma resposta à necessidade de preservar a língua e a cultura. “Naquelas circunstâncias, fazia todo sentido fazer uma gramática normativa,
mas hoje não. Por inércia e falta de compreensão, continuamos reproduzindo esse modelo”, afirma a pesquisadora.

Foi por causa da Grécia Antiga que Maria Helena entrou para a academia. Em 1967, a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (depois encampada pela Unesp) criou a graduação em Letras Português-Grego. Com os três filhos já praticamente criados, ela não resistiu e prestou o vestibular. Depois de duas especializações (em Linguística e Grego), também em Araraquara, partiu direto para o doutorado em Filosofia na USP, que cursou com a licenciatura em Alemão na Unesp – para poder ler a literatura da área, na época majoritariamente germânica.

A tese deu origem ao livro A vertente grega da gramática, de 1987 (reeditado
pela Editora Unesp em 2004). “É uma obra notável em que ela faz um estudo muito aprofundado da filosofia grega para desvelar as bases teóricas e o contexto que cercam o aparecimento da gramática”, afirma José Luiz Fiorin, professor aposentado de Linguística da USP e colega de Maria Helena
dos tempos de especialização.

Aposentada desde 1987, mas sem nunca ter deixado de trabalhar, a rotina atual da pesquisadora deixaria muitos jovens com olheiras profundas. Dormindo cerca de quatro horas por dia, ela dá aula nos cursos de pós-graduação da Unesp em Araraquara e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. É coordenadora do grupo de pesquisa em gramática de usos do CNPq e assessora do órgão na concessão de bolsas na área de Linguística. Autora de mais de 20 livros, está prestes a começar a trabalhar num novo dicionário de usos do português, coordenado por Francisco da Silva Borba, com quem já produziu
três outras obras semelhantes.

“Ao conhecê-la na seleção para a especialização em Linguística, em 1975, des-
cobri o que era ser o segundo da classe”, recorda Fiorin. Ele destaca ainda que Maria Helena é a primeira mulher autora de uma gramática no Brasil. Ser a primeira, aliás, é algo a que ela está acostumada desde cedo. A vaga de professora na rede pública, que assumiu com 18 anos, foi um prêmio recebido por ter sido a melhor aluna de sua turma de Magistério. Seu fascínio pela gramática, porém, é anterior. Ainda menina, costumava abrir sobre a mesa três
edições de Os lusíadas para compará-las.

Com uma legião de fãs no país, a pesquisadora protagonizou um evento atípico
em agosto de 2008, em Araraquara. Seus ex-orientandos e colegas organizaram um congresso para homenageá-la. Foram três dias de programação com a fina nata da Linguística brasileira apresentando e debatendo diversas vertentes da pesquisa em gramática, não só a funcionalista. “Queríamos demonstrar nossa admiração por suas inestimáveis contribuições à Linguística, pela sua atuação generosa e exemplar na formação de novos pesquisadores, pela afetividade que partilha com todos que dela se acercam”, diz a organizadora do evento, Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher, ex-aluna e hoje professora da Unesp em São José do Rio Preto. Sua obra é reconhecida inclusive por colegas de universidades
portuguesas, que frequentemente a convidam para participar em eventos além-mar.

Maria Helena confessa que é do tipo de orientadora que “pega no colo”, mas exige dedicação. Alunos de iniciação científica ela só aceita se puderem passar quatro horas diárias na sua casa. “Quando eles terminam o trabalho, já estão com o projeto de mestrado pronto”, orgulha-se. Os orientandos de mestrado e doutorado sempre somam dez, “que é o máximo permitido pela Capes”, justifica. Nesse ritmo, ela já formou cerca de meia centena de pesquisadores
e não pretende parar tão cedo.


Modismos e acordo ortográfico

Para alguém que entende a língua como um sistema dinâmico e indeterminado, fenômenos atuais como o excesso de estrangeirismos e gerundismos não são exatamente um problema, ainda que muitos os vejam como atentados ao bom português. Sobre a invasão de palavras de origem inglesa no vocabulário, Maria Helena relativiza lembrando que, quando o francês ditava a moda, condenavam-se os galicismos. Já em relação ao gerundismo, a pesquisadora vê o fenômeno como resultado do surgimento dos call centers. “Construindo a frase com gerúndio você minimiza uma ordem, dilui a ação no tempo. Fica mais polido. O problema é que acabou criando um calo, mas também não precisa abolir.”

A língua tem mecanismos de defesa, segundo ela. Como exemplo, cita os estrangeirismos usados como estratégia de marketing que a população geralmente ignora. Apesar do que ditam algumas vitrines, ninguém diz “Eu vou a uma sale” ou “Comprei esta blusa com 50% off”. “Não adianta fazer lei, quem vai dizer o que fica é o povo.” Ela também não teme pela extinção da literatura diante da avalanche de livros de autoajuda que, para ela, não valem como leitura. “A literatura coloca o leitor numa situação de interlocução. Ele vai imaginar, sentir, se enlevar, se elevar. A autoajuda tem outra função, que é re-
solver problemas.” Para a linguista, a boa literatura nunca vai acabar.

Outro tema candente para o qual a pesquisadora vem sendo muito requisitada é
o acordo ortográfico, que ela julga necessário, embora critique a forma como foi implementado. “Vivemos num mundo globalizado, então é importante que Bra-
sil e Portugal escrevam da mesma forma.” Por outro lado, diz, houve uma série de equívocos de interpretação do acordo, que acarretaram diversos problemas ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o Volp, elaborado pela Academia Brasileira de Letras. Segundo ela, é por isso que o acordo tem gerado tanta confusão, principalmente no caso da hifenização. “Vão ter de consertar o Volp”, decreta.


O que dizem sobre Maria Helena

Francisco da Silva Borba
prof. aposentado da Unesp em Araraquara

Além de ser muito inteligente, ela tem uma determinação e uma disciplina incríveis. A agilidade mental dela é invejável. Vive o trabalho com muita intensidade e está sempre disposta a aprender com seus alunos. Escreve com clareza e simplicidade. É a pesquisadora mais produtiva que conheço. É dela a melhor gramática que existe atualmente, pois reflete exatamente como a língua funciona. Sua contribuição para a Linguística brasileira é inegável.

José Luiz Fiorin
professor aposentado da USP

Sua obra apresenta não apenas extensão máxima como uma qualidade de mais alto grau. Profunda conhecedora da tradição gramatical, ela tem plena noção do preceituário normativista dos nossos compêndios gramaticais. Conhece muito bem, por sua minuciosa pesquisa, como estão sendo distribuídas as diferentes formas no uso vivo da língua. Sua carreira é de uma notável coerência. Conhecê-la e ser seu amigo foi um dos maiores privilégios que a vida acadêmica me ofereceu.

Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher
professora da Unesp em S. José do Rio Preto

Ser orientada por ela é ter a experiência de aprender com a clareza de seu raciocínio; é encontrar o encantamento a cada nova pergunta que deriva de uma pesquisa; é aprender a pensar com autonomia; é ter a certeza de uma companhia atenta, de uma instrução segura.

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